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Geopoéticas do Sul na Bienal de Porto Alegre – Sangue, Suor e Pele, Identidade, Fronteira

In ARTE on 14/12/2011 at 12:02

Impotentes perante as irredutíveis limitações do corpo, prisão maior, primeira e ultima fronteira, inventámos no mundo as separações oficiais dos povos; circunscrevemos na terra o espaço inteiro, reduzimos na geografia o enorme colectivo da vida. Retalhámos, cortámos, dividimos. Criámos simbolos graves a que nos amarrámos, hinos e ritos sérios como grades fechadas, e lutámos a impôr ao outro – e portanto a nós próprios – a pertença a uma naturalidade forçada.

Vamos assim nascendo já marcados com o carimbo da mãe pátria que nos amarra, aprendendo letras de um folclore que não sentimos, oficialmente encaixotados como peças soltas na orgulhosa forma maior de um país qualquer…

De algumas destas coisas, e bem de outras, tratam as obras apresentadas na  8ª Bienal do Mercosul – históricamente uma das zonas do globo com maior tradição de turbulência e opressão, guerra e desigualdade. Muitas vezes originários ou manipulados pelo exterior, aqui se fizeram chegar sanguinários eventos e comissários, que a ferro e fogo impuseram o dominio, a exploração e a chacina, a uma das zonas mais ricas e férteis da Terra; berço de algumas das civilizações mais complexas da história.

Paco Cao - El Veneno del Baile

Nesta enorme mostra, que envolve obras de 105 artistas vindos de 31 países, podemos separar as propostas em águas de duas correntes – que apesar de escorrerem paralelas, raro se misturam.

Por um lado uma abordagem de natureza mais simbólica e representativa, mais formal. Esta parte de simbolos tais como bandeiras, mapas ou estátuas para desconstruir e questionar a estrutura oficial e social da realidade proposta. A videoanimação de Alberto Lastreto, com um herói que salta de pedestal em pedestal; os mapas costurados de Anna Bella Geiger; a prateleira de Jean-François Boclé, em que vários produtos industriais nos fitam nas suas embalagens, à espera; a peça sonora de Santiago Serra, em que os hinos dos países do Mercosul se repetem sobrepostos; o sarcástico clip musical de Jonathan Harker; para citar alguns exemplos. Parece haver porém nestes trabalhos uma preocupação grande em responder, em afirmar, em localizar; uma irresistível vontade de caricatura, de ironia, até de humor… Parece que aqui algo de fundamentalmente real se escapou, ou não se tocou; ou que tudo é demasiado leve, ou estreito, ou pequeno… Uma excepção a esta lógica será o trabalho de Yanagi Yukinori, que parte da irrealidade intrínseca ás fronteiras artificiais,  exacerbada pelas migrações – que põem em causa conceitos como nacionalidade ou identidade. Em Eurásia o artista apresenta bandeiras de areia colorida em caixas interligadas, minadas por carreiros de formigas que escavam continuamente passagens e túneis através delas, e entre elas… Aqui, do carácter fortemente simbólico do trabalho, desprende-se uma clara realidade que dispensa truques, efeitos e palavras. Esta proposta viva esmaga a artificialidade e o dogmatismo do discurso comercial globalizante, assim como desmascara o ideário pedante da especificidade cultural do estado nação…

Anna Bella Geiger - Variáveis

Por outro lado encontramos trabalhos cuja forte proposição desvenda a própria realidade, muitas vezes de uma forma directa e dura, crua e cruel; mostrando sem floreados nem rodeios os efeitos e as feridas que o passado selvagem impôs na vida – na alma e no corpo – das gentes; as dores de que se fazem alguns partos… Talvez o maior exemplo de um retrato intemporal e contemporâneo sejam os videos Bocas de Ceniza, de Juan Manuel Echavarría, em que várias pessoas cantam a capella as trágicas histórias por que passaram. Aqui a dureza da realidade impõe-se com tal força que tudo questiona. A violência absurda perverte o conhecido, acontecendo. E toca-nos; em pequenos hinos sobre façanhas bárbaras, brutais e tristes, que nos inundam transbordantes…

Juan Manuel Echavarria - Bocas de Ceniza

http://jmechavarria.com/gallery/video/gallery_video_bocas_de_ceniza.html

Assumindo a subjectividade clara do critério, prefere-se aqui a força autêntica e poética, bruta e surda, explícita, da realidade nua; aos exercicios de estilo, aos esboços de design artistico, ás harmoniosas manobras estéticas com simbolos respeitáveis e estéreis. A coragem expressiva de alguns testemunhos, dolorosos, a generosidade e abertura com que são mostrados, o impacto honesto e real que provocam; tudo caminha crescendo, rumo ao lugar certo: a nossa memória sensivel, a nossa consciência, o humano que somos.

Dois outros trabalhos se impõem neste texto, também videos: a instalação Exorcismo, de Jose Alejandro Restrepo; e El Veneno del Baile, de Paco Cao. No primeiro, frente a um santo feito de gesso é projectado o video de uma intensa performance religiosa, – segundo o artista “um diálogo trans-histórico”, – que parece vir do fundo dos obscuros tempos e aludir também ás encenações/manipulações do cristianismo por terras indígenas. Manipulações estas, aliás, de uma actualidade indiscutível… No segundo caso, Paco Cao traça, numa transversalidade histórica, – e partindo de um livro que terá sido perseguido pela Inquisição, – uma narrativa feita de rituais mágicos e de passagem, ligados à lógica do poder e do shamanismo, em que a dança é o meio de elevação e afirmação. Também e sempre, sobre o outro.

José Alejandro Restrepo - Exorcismo

E seria triste se na dramaturgia abrangente desta Bienal não houvesse lugar para a Utopia, ou para o que com ela se vai nalguns casos fazendo…

Ykon - Ykon Game

Da primeira Cúpula Mundial de Micronações, organizada em 2003 em Helsilquia, saíu o colectivo Ykon; dedicado a apoiar e encorajar a existência de “nações sem representação, países experimentais e pensadores utópicos”, bem como formas alternativas de organização social, educação, e pós-nacionalismo. O colectivo concebeu o Ykon Game, que será jogado na Bienal, e prepara o Brioni Summit, encontro de micronações e activistas em 2013 na Croácia. Ykon realça que “nacionalidade e estado são construções mentais e socio-culturais recentes, que podem ser substituidos por outras formas de envolvimento e identidade.”

Por vezes a paisagem surpreende-nos… tal a fertilidade caótica e colorida de alguns caminhos…

Manuela Ribadeneira crava na parede uma faca que poderia estar no chão, na sombra lê-se Hago mío este territorio ! Talvez mais do que o desejo de posse ou propriedade estejamos aqui a entrar na ideia da terra a que verdadeiramente possamos pertencer, a nossa única, específica e particular, parte exterior de uma completude na vida, essa ambição assumida. Podendo reclamar obviamente apenas o que nosso for, a artista sugere aqui o reconhecimento e a apropriação do lugar fisico próprio, como afirmação primordial e última da existência. Também esta obra parece conter em si a semente primeira e pura de uma história maior …

Cortázar, filho de Buenos Aires nascido na Bélgica e vivido em Paris, escreveria um dia…

La Patria

Patria de lejos, mapa,
mapa de nunca.
Porque el ayer es nunca
y el mañana mañana.

 

Guardo un olor de trébol,
una calle con árboles,
un recuento de manos,
una luz sobre el río.

 

Patria, cartas que llegan
y otras que vuelven,
pájaros de papel
sobre el mapa volando.

 

Porque el ayer es nunca
y el mañana mañana.

Revista Sauna nº 15, Outubro de 2011, Buenos Aires, Argentina.

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